sexta-feira, 15 de maio de 2015

Deus mandou matar pessoas?


Falar da imagem de um Deus, como na figura de Jesus, amoroso e complacente, é fácil. O problema está quando nos deparamos com a imagem de um Deus, como no Antigo Testamento, aparentemente sanguinário, déspota e que ordena genocídios. Muitos cristãos fogem dessa imagem arbitrária de Deus que mata e manda matar. No entanto, a realidade é que a Bíblia está repleta de passagens assim e nós não podemos tapar os olhos para elas. Muitos céticos e ateus usam essas passagens para atacar os cristãos, o cristianismo e o Deus dos cristãos. Essa afronta deve ser mais um motivo para nos posicionarmos, estudarmos, buscarmos as fontes e procurarmos esclarecer o real sentido dessas passagens.
Eis alguns exemplos dessas passagens complexas: Em Deuteronômio capítulo 7, onde Deus ordena aos israelitas que destruam os cananeus e outras seis cidades e, no verso 2, diz para que eles não tenham piedade. Deus manda o Dilúvio para exterminar uma boa parte da humanidade, manda executar os primogênitos no Egito.

Como pode um Deus de amor agir assim?
Em 1966 o psicólogo George Tamarin fez uma pesquisa com 1666 crianças, com idade entre 8 a 14 anos. Depois de apresentar a elas a história Bíblica da destruição de Jericó, ele perguntou: Você acha que Josué e os israelitas agiram corretamente? Eis o resultado:
“Tamarin, em seguida, pediu às crianças uma questão moral simples: 'Você acha que Josué e os israelitas agiram com razão ou não' Eles tiveram que escolher entre A (aprovação total), B (aprovação parcial) e C (reprovação total). Os resultados foram polarizados: 66% deram a aprovação total e 26% desaprovação total, sendo 8% no meio, com aprovação parcial. Aqui estão três respostas típicas do (A) grupo aprovação no total: Na minha opinião Josué e os filhos de Israel agiu bem, e aqui estão as razões: Deus lhes prometeu esta terra, e deu-lhes permissão para conquistar”.  [¹]
Mas, quando Tamarim substituiu o nome de Josué pelo do terrível general Lin e o nome de Israel pelo do Império Chinês, apenas 7% das crianças acharam certa a atitude da China em destruir seus oponentes e 75% reprovaram essa atitude. Parece que quando alguém pratica um massacre é um Hitler da vida, nós achamos que realmente foi algo terrível. Mas, quando quem fez a matança foram os israelitas,estamos achando que eles fizeram a vontade perfeita de Deus. Talvez por isso muitos cristãos prefiram ficar restritos às páginas do Novo Testamento. Parece que o Deus do Antigo Testamento não é agradável. Qual a resposta para isso? Sem discursos apaixonados, os textos estão aí e precisamos encará-los.

Deus é bom, seja no Novo Testamento, seja no Antigo Testamento:
Observamos que a ideia de um Deus implacável no Antigo Testamento e um bom no Novo Testamento, é uma ilusão de ótica. A palavra misericórdia aparece, dependendo da versão usada, 261 vezes na Bíblia, sendo que 71% estão no Antigo Testamento. A palavra amor é citada 322 na Bíblia, contendo praticamente uma metade em cada um dos dois testamentos. Nós temos inúmeras passagens que demonstram o amor, a misericórdia e a bondade de Deus para com os homens. O livro de Salmos é um grande louvor a esses atributos imutáveis de Deus.
Outro exemplo que desconstrói a ideia de “dois deuses” é o grande assunto do juízo final, com todo seu julgamento, recompensa e punição, sendo mais comum no Novo Testamento do que no Antigo Testamento.

A questão das mortes:
Quando Deus mata pessoas, precisamos entender que o que é proibido pra mim não é pra ele, o que é permitido a ele nem sempre é a mim. Deus é Deus. Por exemplo, Ele pode e deve receber adoração de seus filhos. Eu, porém, não tenho esse direito de ser adorado. O mesmo se aplica a vida, Deus tem o direito moral e legal de tirar a vida de um ser vivo porque foi ele quem a deu para aquela criatura. Eu não dou vida, portanto, não posso tirar.
Uma comparação: Imaginemos o retrato da Monalisa, se eu o destruo, eu sou criminosa. Contudo, se Da Vinci destrói, ele pode pintar outro e ambas as pinturas serão originais.
Essa problemática da morte, referindo-se a Deus, é até fácil ponderar. Mas, e quando são os israelitas que mataram em seu nome?

Entendendo a Cultura:
A Bíblia foi dada primeiramente aos hebreus, israelitas. Foi produzida em seus costumes, língua e cultura.
Devemos ser criteriosos ao julgamos outras culturas, pois, geralmente nós tendemos a julgar a cultura alheia pelos nossos próprios códigos de valores. Às vezes isso não dá certo. Por exemplo: Uma mulher de respeito não mostra os seios em público no ocidente, ainda mais se ela for religiosa. Tal prática é mal vista por nós. Porém, existe uma tribo milenar no Zaire, África, onde as mulheres andam com seios de fora. Quando um grupo de missionários foi pregar o evangelho a eles, que foram receptivos à mensagem de Cristo, eles recusaram-se a aceitar uma exigência do grupo: Usar blusa, pelo menos, durante os cultos. Naquela cultura, as mulheres “de bem”, chamadas mamas, mostravam os seios como um honroso símbolo de maternidade e respeito. Em contra partida, as prostitutas eram privadas desse privilégio, sendo obrigadas a tamparem os seios. Além do fato delas receberem dinheiro de seus amantes e com esse dinheiro poderem comprar blusas coloridas para si mesmas. O fato é que, para eles, o ato das mulheres cobrirem os seios é sinal de desonra.
Vemos com esse exemplo que costumes étnicos não são tão facilmente modificados.
No oriente médio, as coisas geralmente eram resolvidas por guerra. Havia até a estação do plantio, da colheita e da guerra. Contudo, Deus não permite essa prática para sempre. A Bíblia é um livro repleto de relatos históricos e, com isso, precisamos compreender que mudanças sociais levam tempo para acontecerem.  Portanto, Deus respeita o amadurecimento social da humanidade.
Deus não queria que seu povo fosse guerrilheiro, como exemplo disso temos Abraão, ele não usou força armada para expulsar ninguém de Canaã. Sua figura pode ser assemelhada a de um comerciante comprando terras. Terras, inclusive, que foram confiscadas ilegalmente por tribos bárbaras, enquanto os hebreus foram escravos no Egito. Portanto, a conquista de Josué era, na verdade, foi uma reconquista, uma retomada de posse daquilo que já fora adquirido por Abraão, mas foi usurpado pelos pagãos inimigos de Israel.

{A única fez que Abraão se envolveu num conflito armado foi contra m grupo de chefes tribais e foi para libertar seu sobrinho que fora capturado por eles. Mas essa é outra história.}

Guerras repercutem em mortes:
Israel recuperou as terras que lhes pertencia, Abraão havia adquirido, mas, o problema era que a terra de Canaã estava repleta de grupos hostis que ficavam pelo caminho e havia um impedimento a penetração dos judeus e seu retorno para casa. Esse grupo queria matar Israel. Por isso eles foram obrigados a se defenderem.
Imagine que um grupo de traficantes pegue sua família e a faça refém e ameaça matá-la no esconderijo da quadrilha. Você acha errado a polícia entrar no local, armada, montar um cerco e, se preciso fosse, matasse alguns marginais? Tudo para libertar sua família... Certamente você não acharia ruim.
A morte está longe de ser ideal, mas em algumas situações de risco ela pode se tornar um mal necessário.
Veja o caso da Segunda Guerra Mundial. Todo mundo comemorou quando Hitler e seus generais foram mortos pelas forças aliadas. O problema é que uma perca de controle é inevitável. Berlim foi bombardeada antes que o fuhrer pudesse ser derrotado e morto e com isso inocentes acabaram sendo mortos.

Os povos atacados e suas culturas:
Por isso Deus ordenou Israel guerrear contra alguns povos cujas práticas estavam abaixo do aceitável. Entre as práticas comuns dos cananeus estavam os sacrifícios de crianças em rituais religiosos, prática de orgias ritualísticas sazonais, onde virgens adolescentes eram violentadas e depois mortas por sacerdotes, apenas para garantir a fertilidade da terra. Esses povos queriam “apagar” Israel da Terra.
Um humanista e arqueólogo chamado William Foxwell Albright, admitiu que as comparações dos objetos de culto e textos mitológicos dos cananeus com os dos egípcios e mesopotâmios , levam a uma única conclusão:
"Que a religião cananita era muito mais centrada em sexo e suas manifestações, em nenhum outro país foi encontrado tantas figuras de deusas de fertilidade nuas, algumas distintamente obscenas, em nenhum outro lugar o culto às serpentes aparece com tanta força. As duas deusas Astarte e Anat são chamadas de: As grandes deusas que concebem, mas não dão a luz."
Ele chegou a admitir que Israel fez um favor em exterminar culturas com costumes tão odiosos. Defensores de minorias culturais que, corretamente, denunciam o discurso colonialista que é feito para justificar a supressão e opressão dos direitos civis, podem se indignar com tal afirmação. Contudo, é um grave erro imaginar que todas as culturas, indistintamente, devam ser respeitas ou preservadas. Ou que todas gozam do mesmo direito civil de existir sem transmitir nenhum problema para a geração futura.
O que você acha dos que insistem em perpetuar o nazismo ou os costumes tribais de canibalismo e encolhimento de cabeças? Será que essas culturas servem para o bem da humanidade? Deveriam ser preservadas?

A questão dos inocentes:
Mas, e os inocentes? Eles morrem? Sim. Em conflitos armados, morte de inocentes infelizmente são inevitáveis. Deus fará justiça por esses que morreram por causa do conflito e não por causa de sua rebeldia. Como os mártires do evangelho que foram mortos sem terem feito nada para merecerem isso.
E é bom deixar claro que, todo esse contexto histórico não significa que a religião tenha hoje o direito de tirar vidas, de maneira nenhuma! O antigo Israel estava num contexto e cultura bem distinto dos do nosso. E, acima de tudo, eles eram regidos por uma teocracia, nós não. É muito perigoso transferir para mãos humanas o veredicto da morte de uma pessoa.  A igreja não deve legislar sobre isso. Não devemos exercer justiça com as mãos. As autoridades civis são responsáveis por essas questões, como lemos em 1 Pe 2:13-17.
É importante destacarmos também que Israel não era inteiramente bom.  Deus também puniu Israel, por diversas vezes como conseqüências de sua rebeldia. E, assim como Israel era continuamente convidado a se arrepender de suas más práticas, vem em Gênesis 15:16 que esses povos tiveram tempo hábil para se arrepender. No tempo de Abraão Deus já apelava ao coração de alguns povos cananitas para que se arrependessem.  Houve pelo menos 400 anos de paciência e misericórdia de Deus.
O fato de existirem cidades ímpias não significava que não havia povo bom fora de Israel. Deus sabia que havia. Tanto que na sistematização das leis nacionais do futuro reino de Israel o próprio Deus estabeleceu regras para o bom trato do estrangeiro que estivesse em terras israelitas.

Jesus e a lei suprema:
Os judeus tinham uma maior tolerância ao divórcio e à poligamia, que são costumes inferiores às estruturas criacionais estabelecidas por Deus no Éden. Contudo, Jesus veio dar maior sentido à lei e mostrar o caráter provisório de algumas leis, como a ordem para matar. Ele ensinou que a lei perfeita é amar o próximo como a si mesmo, perdoar, orar por seus inimigos.

A ordem para matar e o mandamento Não Matarás:
Mas, a ordem de matar não se chocava com algumas leis dos mandamentos como “Não matarás?”. A reposta é: Não!  No Antigo Testamento há pelo menos 7 diferentes termos hebraicos que podem ser traduzidos por matar. O que aparece no sexto mandamento é em hebraico lo’ tirtsah, que significa “não assassinarás”, não use com violência contra um inimigo pessoal.

O caso dos amalequitas:
Em 1 Sm 15:2-3 temos uma passagem ainda mais difícil:
"Assim diz o Senhor dos Exércitos: Eu me recordei do que fez Amaleque a Israel; como se lhe opôs no caminho, quando subia do Egito.
Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos."

Nessa situação Deus estava testando a obediência do então rei Saul. Comparando a linguagem do texto a outras literaturas do antigo oriente médio, é possível trabalhar com a hipótese de que aqui existe uma linguagem hiperbólica, que não pode ser levada ao pé da letra.
Como exemplo temos a Estela de Mesha (ou Pedra Moabita), escrita no nono século antes de Cristo, descreve as vitórias do rei de Moabe. Na linha 17 o rei se diz enviado do deus de Chemosh para atacar Israel, para matar tudo o que houver ali, homens e mulheres, nativos e estrangeiros, e devotar ao altar de chemosh. A pedra de Mesha diz que o rei cumpriu a regra ao pé da letra. Mas, será mesmo? Os povos continuaram existindo ali...

Temos também a Pedra do Faraó Merneptah, datada do 13º século antes de cristo, ela igualmente fala do massacre e descreve nesses termos: “Israel está devastada, sua semente já não existe”. Isto é, não sobrou nenhum dos descendentes.  Ele foi totalmente destruído. O que sabemos que não aconteceu na realidade. Essa linguagem é parecida com a de livro de Samuel pra falar dos amalequitas. Literalizar linguagem hiperbólica é um erro e um perigo. Imagine alguém entender ao pé da letra uma mãe brava que diz “hoje eu acabo com aquela menina!” No NT também há linguagem hiperbólica, como quando Jesus diz “Se o teu olho te faz pecar, arranque-o!”. Exagero linguístico, comum aos idiomas.  
Assim entendemos esses textos. Deus jamais ordenaria o massacre de crianças inocentes.

Pontos importantes, conclusão:
1)      Deus é imutável. Como é dito em Malaquias 3:6, o Senhor não muda. Toda estrutura que foi estabelecida pelo Senhor desde o Éden, é a mesma hoje e será eternamente. Seus valores e princípios morais são eternos e imutáveis. Contudo, devido a queda do homem, relatado no livro bíblico de Gênesis, no capítulo 3, o homem pecou e toda essa estrutura criada pelo Eterno foi corrompida pelo mal. Logo, vemos ao logo da história da humanidade sociedades, costumes e culturas tão terríveis ao ser humano. As mortes e guerras não fazem parte do plano original de Deus, contudo, o Altíssimo respeitou o processo de amadurecimento das sociedades. O que era visto como comum naquela época [guerras e mortes], hoje já não é para nós.
2)      Cristo veio ao mundo na plenitude dos tempos, no momento exato. E trouxe para a humanidade a mais perfeita e clara revelação do caráter e vontade do Deus Criador à humanidade. Cristo transcende a lei de Moisés e nos revela o mais sublime dos atributos eternos de Deus: O seu amor ágape.
3)      Precisamos sempre estudar e analisar os textos bíblicos criteriosamente e separarmos costumes, culturas e tradições humanas de princípios e valores divinos.


Referência:
SILVA, Rodrigo. Programa Evidências, publicado em 22 de dezembro de 2013. Neste link

[¹] = “The problem with religion-4: Corrupting the minds of children”, link. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário